Em tempos de pandemia do Coronavírus em que uma série de profissionais das mais distintas áreas de formação está empenhada em desenhar e executar políticas de enfrentamento da crise, muitos especialistas, principalmente os economistas precisam ainda dedicar parte do seu tempo para explicar à sociedade a necessidade premente de cooperação entre economia e saúde. Isso porque foi disseminada entre a sociedade a ideia de que o combate ao vírus, por meio do distanciamento social, provocará um caos econômico e é preciso prioritariamente salvar a economia. Criou-se a falácia do dilema entre economia e saúde.
É inegável que a medida tida como mais prudente, necessária e reconhecida pelas autoridades de saúde pública para conter o avanço da Covid-19 e preservar a vida das pessoas, o distanciamento social, traz impactos negativos para a economia. A interrupção abrupta das atividades econômicas amplia o desemprego, compromete a renda das famílias e agrava as condições de miséria que podem matar mais que o vírus. No entanto, como vem sendo ressaltado por inúmeros economistas, “este não precisa ser o nosso destino” (CARVALHO, ET AL., 2020).
Em todo o mundo, os governos têm se mobilizado e implementado medidas que amenizem os impactos negativos da Covid-19 sobre a economia. De acordo com a FGV (2020), os países como os Estados Unidos anunciaram, na esfera econômica, medidas que representam 6,3% do Pib; Reino Unido e Espanha anunciaram pacotes que representam 17% do Pib. Somente os Governos podem, de fato, adotar um determinado conjunto de medidas, pois diferentemente das famílias e das empresas, eles podem emitir moeda e, além disso, podem endividar-se numa escala muito superior a das famílias. No Brasil, as medidas até agora anunciadas representam cerca de 2,9% do Pib. Há, de forma geral, uma percepção de que as medidas brasileiras são insuficientes para dar conta da complexidade da crise que já está instalada.
O Observatório do Desenvolvimento Capixaba (ODC) tem acompanhado atentamente as medidas anunciadas e vem analisando a importância de cada uma delas no combate à crise. As medidas anunciadas pelo governo estadual no que se refere ao distanciamento social estão corretas e com a paralisação das atividades econômicas é necessária a conjugação de políticas monetárias e fiscais para manter as famílias em casa com condições dignas de sobrevivência.
No Espírito Santo, o Governo Estadual anunciou seu pacote econômico para o combate à crise no valor total de R$ 300 milhões, o que não representa nem 1% do Pib capixaba. Em que pese o fato de o valor anunciado ser modesto face à crise que assola o estado, a natureza das medidas anunciadas é majoritariamente voltada ao alívio do fluxo de caixa das empresas, não privilegiando o pilar da criação de uma rede de proteção social, que para o caso capixaba ficou quase que exclusivamente na dependência do auxílio anunciado pelo Governo Federal.
O ODC tem se debruçado em analisar a economia capixaba e propor ações para o combate à crise, entre elas: Formular um Programa de Renda Mínima Capixaba. Esta proposta apresentada pelos pesquisadores do ODC é crucial dada a vulnerabilidade social em que já se encontrava a população do estado antes da crise do coronavírus.
1. Renda Básica Emergencial
1.1 Renda Mínima para famílias em situação de vulnerabilidade
Segundo um estudo sobre o Perfil da Pobreza no Espírito Santo, publicado pelo IJSN (2019), o estado possui cerca de 919 mil pessoas que vivem com menos de R$ 425,22 por mês e cerca de 575 mil pessoas vivendo com menos de R$ 146,90 mensais. Estes valores representam a linha de corte que define a pobreza e a extrema pobreza de acordo com o Banco Mundial. Assim, o estado possui o equivalente a quase 23% da população do estado vivendo em condição de pobreza e o equivalente a 14,3% em condição de extrema pobreza.
Ressalta-se que a base de dados utilizada pelo Instituto Jones dos Santos Neves para elaborar o referido estudo foi Cadastro Único (CADÚNICO). O Cadastro Único incorpora dados de famílias que tenham renda familiar per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar de até 03 salários mínimos. Trata-se de uma fonte relevante para análise da pobreza, uma vez que permite o acesso das famílias aos programas sociais, sendo sua abrangência quase censitária.
Ademais, o estudo mostra que a maior concentração da pobreza no estado está localizada na Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV) e em regiões do interior como Caparaó, Noroeste e Nordeste. Essas localidades concentram uma população que reside em moradias que favorecem a disseminação do vírus. Vivem em favelas com condições sanitárias precárias e menor cobertura de serviços públicos. Nesse sentido, implementar políticas de achatamento da curva de contágio fica cada vez mais comprometida.
Na ausência da crise do coronavírus, o volume de recursos anual necessário para retirar a população capixaba da linha da extrema pobreza, isto é, possibilitar que cada cidadão capixaba tenha renda mensal acima de R$ 146,90 é de R$ 633 milhões; e para eliminar a pobreza o volume de recursos anual necessário é da ordem de R$ 3,2 bilhões. Tal situação é profundamente agravada hoje em que essas famílias veem ainda mais reduzidas as suas chances provisão de recursos até mesmo para alimentação diária.
1.2 Renda mínima para trabalhadores informais
Para os trabalhadores informais, que inclui os artesãos, os inseridos na economia solidária, motoristas de aplicativos, taxistas entre outros, a proposta do Governo Estadual é a liberação de um empréstimo de R$ 5.000,00 com carência de 06 meses e parcelamento em 24 meses. Esta proposta poderá ter um alcance limitado, pois nos casos, por exemplo, dos motoristas de aplicativos, de acordo com a Associação dos Motoristas de Aplicativos do Espírito Santo (AMAPES), estes trabalhadores somam quase 12.000 profissionais, e estão majoritariamente localizados na RMGV, com pouco alcance da população vulnerável no interior do estado. Para essa parcela da população, a proposta básica do ODC é, em primeiro lugar, garantia de uma renda mínima emergencial e, apenas de forma complementar, uma política de empréstimo, facultada ao uso ou não da política de empréstimo. Vale lembrar sempre que empréstimo não é renda.
Soma-se a isso, o fato de que em tempos de incertezas sobre o curso da economia, as pessoas elegíveis para a linha de crédito proposta poderão ficar receosas em assumir o risco em recorrer a este empréstimo, assim como poderão de fato assumir a dívida e ficarem inadimplentes no futuro, agravando ainda mais a vulnerabilidade desses cidadãos.
Assim, destaca-se a necessidade urgente da elaboração de um amplo programa de renda básica emergencial. No Espírito Santo, cabe lembrar que a elaboração de um programa dessa natureza não precisa necessariamente ser desenhado sem nenhuma referência. O estado conta, desde 2011 com o Programa Incluir, cujo objetivo é a redução das desigualdades sociais e regionais e diminuir os índices de pobreza e extrema pobreza. Com uma série de ações combinadas, o programa busca combater a exclusão social de modo a possibilitar a ampliação do acesso aos direitos fundamentais à parcela mais vulnerável da população do estado. O Projeto Bolsa Capixaba integra o Programa Incluir como uma ação de transferência direta de renda a famílias extremamente pobres no estado do Espírito Santo.
De acordo com dados do Portal de Transparência, neste ano (2020), 26.810 famílias foram beneficiadas diretamente pelo Bolsa Capixaba, sendo transferidos R$ 3.861.320,00. O valor médio do benefício repassado foi de R$ 77,81. Assim, recomenda-se a ampliação da cobertura e dos valores repassados à população. A ampliação da cobertura poderá ser feita, por exemplo, com apoio dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) existentes nos 78 municípios capixabas. Estes Centros poderão ser grandes parceiros na ampliação do Cadastro Único tornando mais amplo o alcance da Renda Básica que, conforme Canuto (2020), poderá ser útil não apenas para estender o sistema de transferências antes limitado ao Bolsa Família, como para um futuro estabelecimento de políticas sociais bem conectas com necessidades locais diferenciadas pelo estado. Nas palavras de Canuto, é fundamental “conhecer o pobre pelo nome.”
No que tange aos informais, não é possível contarmos apenas com a execução de programa voltado para garantir a renda imediata da população capixaba exclusivamente alicerçado em empréstimos como proposto pelo Governo Estadual. A população “uberizada” precisa ser contemplada no Programa de Renda Básica Emergencial.
Por fim, não há espaço para uma divisão entre economia e saúde. As condições para o achatamento da curva de contágio e a preservação da vida dependem da capacidade dos líderes em executar políticas que mantenham as famílias em condições dignas em casa. Isso requer imediatamente a transferência de renda e a melhoria contínua dos serviços públicos de saneamento, habitação, educação… Isto é Economia. Isto é Assistência Social. Isto é Saúde. É hora de cooperar!!
Referências:
CANUTO, Otaviano. Renda básica e integração das favelas deveriam ser legados da covid-19. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/coronavirus/renda-basica-e-integracao-das-favelas-deveriam-ser-legados-da-covid-19/. Acesso em 09 de maio de 2020.
CARVALHO, André Rocaglia de; et al. Ao imprimir dinheiro, Estado cria poder de compra que antes não existia. Disponível em:. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/emitindo-moeda-o-estado-cria-poder-de-compra-que-antes-nao-existia.shtml. Acesso em 10 de maio de 2020.
FUNDAÇAO GETÚLIO VARGAS (FGV). As políticas que estão sendo adotadas para o combate ao COVID-19: experiência internacional e o Brasil. Disponível em: https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/posts/politicas-que-estao-sendo-adotadas-para-o-combate-ao-covid-19-experiencia-internacional-e-o. Acesso em 02 de abril de 2020.
INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Perfil da Pobreza no Espírito Santo: Famílias Inscritas no CADÚNICO (2019a). Disponível em: <http://www.ijsn.es.gov.br/component/attachments/download/6702>. Acesso em 02 de abril de 2020.
PORTAL DA TRANSPARÊNCIA DO GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Disponível em: https://transparencia.es.gov.br/Outros/BolsaCapixaba . Acesso em 10 de maio de 2020.